
“Every man is three people; the man as he sees himself, the man as others see him, and the man as he really is.” (Don Giovanni)
A figura de Giacomo Casanova (1725-1798) tem motivado ao longo da história, discussões acesas e reacções apaixonadas, que o colocam entre as personagens mais amadas e odiadas de todos os tempos. O veneziano, nascido no primeiro quartel do século XVIII, no seio de uma família de actores é, incontestavelmente, uma figura controversa, à qual não podemos ficar indiferentes. Mesmo quando aderimos ao seu universo, verdadeiramente sedutor, que Ian Kelly reproduz na perfeição, quando conhecemos os seus impulsos, a sua genialidade criativa, o seu epicurismo levado a extremos em todos os patamares da sensualidade, não podemos também deixar de registar o seu lado mais obscuro, que se pode revelar verdadeiramente negro, perverso e marcadamente reprovável para o espírito contemporâneo. O historiador Ian Kelly, aqui tornado biógrafo, traça o itinerário da vida de Casanova, desde o seu nascimento, em Veneza, até à sua morte em Praga, aos 49 anos. O período que medeia estas duas balizas cronológicas, assenta não só nas memórias que o próprio Casanova nos deixou, mais de 3600 páginas onde se registam centenas de episódios da sua vida sentimental e sexual, a maioria com mulheres, mas também alguns, poucos, com homens; onde se relatam as suas experiências gastronómicas e os inúmeros enredos de natureza pessoal e alguns em contexto diplomático e/ou político. Apesar da vivacidade do texto de Casanova e da extraordinária crónica de costumes que contém, as suas palavras deverão ser lidas com prudência e distanciamento em relação ao próprio personagem que o autor descreve na primeira pessoa. É aqui que reside o notável trabalho de Kelly, ao cruzar as palavras do veneziano com outras fontes coevas, podendo em algumas ocasiões comprovar, documentalmente, alguns relatos que contemporâneos de Casanova, atribuíram à sua muito prolífica imaginação e que agora, pela primeira vez, se transformam em factos históricos. Trata-se de uma obra de referência para o entendimento de um personagem digno de libreto de ópera (actividade em que aliás terá participado …), ele que foi poeta, dramaturgo, matemático, filósofo, que criou lotarias, que ganhou e perdeu enormes fortunas, que iniciou uma formação eclesiástica para mais tarde se “perder” nos meandros da cabala, que gozou os prazeres eróticos das suas múltiplas experiências amorosas até definhar, vítima de um envelhecimento precoce, na enfermidade e na solidão. O retrato que fica é o do ocaso do Ancien Régime, do abismo que separava as elites dos restantes estratos sociais, do luxo e da miséria excessiva e imunda das ruas de Veneza, das festas populares, do teatro e da ópera, das cidades que Casanova visitou: Paris, Londres, São Petersburgo, Constantinopla entre muitas outras (terá percorrido 64.060 kms durante a sua vida), mas também o de um homem que tal como o regime político que o vira nascer, acaberia também ele próprio por desaparecer vítima da insaciável voragem do tempo.
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