2008-09-22

Reconversão de lugares de culto religioso – irrelevância do espaço sagrado e o pragmatismo contemporâneo.

Para o homem primordial o mundo era habitado por muitos deuses. As suas casas eram lugares imensos, como a própria Natureza. Era então difícil ao Homem abarcar a ideia de domesticar esses entes, ou trazê-los para a vivência do seu quotidiano. Assim, eles tornaram-se o próprio sol, ou assumiram as qualidades dos elementos: fogo, terra, ar, água. A estes, juntaram-se muitos outros e com a sedentarização das comunidades humanas foram-se também reservando “espaços” para os evocar e adorar. Aos deuses antigos juntaram-se novos, na constante procura do entendimento da razão da existência e dos seus fenómenos. As grandes civilizações, primeiro as orientais, depois as próximas da bacia do mar Mediterrâneo, procuravam adorar os seus deuses e divindades adoptando lugares que pela sua posição geográfica permitiam uma maior interacção com essas entidades. O Olimpo e a sua contrapartida terrena é produto da civilização grega que assim assimilava um legado milenar, dando-lhe um significado verdadeiramente novo. Torna-se fundamental assumir uma vivência cultual que se materializa e dissemina através da construção de altares e templos cujas fundações cresciam sobre um chão que se tornava sagrado. Mas será em Roma, pátria do pragmatismo, onde nascerá um templo dedicado a todos os deuses, o Panteão. O templo inicialmente mandado construir por Agripa no rescaldo na batalha de Actium (31 a. C.) pereceu num incêndio (80 d. C.). Coube então ao imperador Adriano (76-138 d. C.) a ideia de o reconstruir, no mesmo local, ou seja, no mesmo chão sagrado, a partir de 125 d. C., o monumental edifício que chegou aos nossos dias. Ao reconstruir o templo no mesmo chão onde se erguera o anterior, o pantheon saía reforçado na sua sacralidade. Adriano pede ao arquitecto que incorpore na nova fachada a referência a Agripa, que fora afinal o construtor do templo destruído: M·AGRIPPA·L·F·COS·TERTIVM·FECIT (Marcus Agrippa, Lucii filius, consul tertium fecit). O edifício viria a ser reparado em 202 d. C. durante o consulado do imperador Caracala. Em 609 o edifício é doado pelo então imperador bizantino ao Papa Bonifácio IV que o consagra ao culto cristão, assumindo o templo o nome de igreja de Santa Maria dos Mártires. A importância do Panteão no fixar de uma nova gramática construtiva é da maior relevância para os artistas do Renascimento, sobretudo para os arquitectos, como Brunelleschi que percebe parte da solução construtiva da magnífica abóboda. Os resultados práticos da sua investigação podem ainda hoje ser observados em Florença, no Duomo (Santa Maria del Fiore). É no panteão que são tumulados pintores como Rafael e Anibal Carracci ou os reis de Itália Vítor Emanuel II e Humberto I. Isto para dizer que a sacralização do templo não se perdeu na voragem do tempo, o templo continua lá, embora seja hoje um lugar de peregrinatio para turistas de todos mundo, de todas as culturas e cultos, recebendo-os a todos como aliás fizera já, em tempo remotos, a todos deuses. Claro está que outros edifícios de assumida grandeza, como lugares de culto, sofreram percursos análogos ao longo da história. Alguns interrompendo ou anulando a sua razão de existir, por períodos variáveis, conforme a história desenha o seu obstinado itinerário. Exemplo relevante é o Parténon (séc. V a. C.) na acrópole em Atenas, levantado para glorificar a deusa Atena, sucessivamente destruído e ocupado e reutilizado, como igreja cristã, mesquita otomana e até simples paiol. Se por um lado a sucessiva ocupação de um espaço sagrado, mesmo que por diferentes cultos ou religiões, numa espécie de antropofagia, vê reforçada pelo mais recente ocupante a sacralidade do lugar, também a sua utilização para outros fins poderá por em causa elementos fundadores da nossa cultura, assente no respeito pelo outro e pela diversidade dos seus costumes e crenças. Assim, a reconversão dos espaços anteriormente dedicados ao culto religioso, com sejam templos e igrejas, é um fenómeno que tem vindo a crescer nas últimas décadas na mesma proporção do declínio do número de fiéis. Entenda-se neste caso, os diferentes ramos do Cristianismo, nos países industrializados do Ocidente. Da Austrália aos Países Baixos, passando pelos Estados Unidos e Portugal, o fenómeno da reconversão dos edifícios a outros fins, é um fenómeno que veio para ficar. As motivações poderão ser várias, ainda que vejamos em primeiro lugar os interesses imobiliários, que aqui descobriram um filão a explorar. É aqui que reside o que poderemos classificar de “pragmatismo” ocidental, com as suas raízes no protestantismo do norte da Europa, que rapidamente desmonta os fundamentos de uma matriz cultural de séculos para, sem quaisquer preconceitos, a adaptar a um presente que se quer verdadeiramente do “seu tempo”. O facto de muitas igrejas terem sido abandonadas ao culto religioso e os seus recheios vendidos ou integrados em museus, levou a que se transformassem em enormes espaços vazios, muitos deles esquecidos pelas autoridades civis e religiosas, entregues por assim dizer à sua má sorte. Todos conseguimos apontar exemplos de igrejas e conventos que se tornaram verdadeiros armazéns, albergando animais, produtos diversos ao mesmo tempo que servem de abrigo a todo o tipo de actividades, sendo igualmente refúgio dos sem-abrigo. No momento em que a Igreja de S. Julião, em Lisboa, se prepara para mais uma intervenção, que irá transformá-la deste vez em museu do Banco de Portugal, importa apontar alguns dados da sua funesta história: a igreja primitiva datada do século XIII foi completamente destruída pelo Terramoto de 1755. A sua reconstrução, segundo risco pombalino, teve lugar entre 1802 e 1810. Viria a sofrer um incêndio em 1816, sendo de novo reconstruída entre 1814 e 1854. Em 1933 foi adquirida pelo Banco de Portugal, estando aberta ao culto até 1934. A igreja é hoje utilizada como garagem do Banco de Portugal. Este é um dos exemplos de edifícios religiosos cujas utilização sofreu e está em vias de sofrer alterações significativas à sua função primordial. Seguem-se imagens de outros edifícios religiosos reconvertidos, um pouco por todo o mundo, que são exemplos reveladores da irrelevância do chão sagrado e do pragmatismo contemporâneo:

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