2008-09-13

A Rosa Araújo. Esperança e desalento II

Há ruas que são como parentes, têm nomes que nos fazem lembrar pessoas que conhecemos, sobre as quais ouvimos histórias ou simples relatos, que nos despertaram curiosidade e muitas vezes até inusitados afectos. Afinal o topos ónoma, (nome de um lugar), pelas fortes relações que estabelece com a história e a arqueologia, determinantes para elucidar da sua génese, foi durante muitos anos encarado como algo de muito sério por todos aqueles envolvidos na sua adequada atribuição. Isto para dizer que dar um nome é coisa que exige ponderação. No caso de Lisboa a denominação de novos arruamentos ou a alteração dos actuais compete à Câmara Municipal, ouvidas as juntas de freguesia da respectiva área e a Comissão Municipal de Toponímia que integra um conjunto diversificado de membros. Há ruas que têm nomes que lhes assentam bem, como é o caso da Rosa Araújo. Esta tomou o nome de José Gregório da Rosa Araújo (1840-1893), comerciante, deputado, par do reino, 26º presidente da Câmara Municipal de Lisboa (1879-1885), principal impulsionador e responsável pela abertura da Avenida da Liberdade (iniciada em 1879), que levou à destruição do Passeio Público Setecentista (arq.º Reinaldo Manuel), parte integrante do projecto Pombalino de reedificação de Lisboa.
A contestação ao projecto fez-se sentir logo de início, com as demolições do antigo teatro das Variedades e da praça do Salitre, assim como de importantes edifícios localizados na praça da Alegria, cujos proprietários receberam avultadas indemnizações e que deixaram depauperadas as finanças camarárias. Seguiu-se a demolição dos prédios da rua do Salitre, que então chegava à rua das Pretas e, posteriormente, os que existiam na praça da Alegria de Baixo. Todavia, tal como o barão Haussman em Paris, também Rosa Araújo prosseguiu a sua cruzada. Recorreu a bens pessoais e lançou a semente para uma nova fase de construção de prédios de arrendamento, cujo financiamento foi assegurado por uma nova estirpe de capitalistas, como Barata Salgueiro com os quais foi possível estabelecer acordos para construção na zona ocidental da futura Avenida. Será interessante verificar que o lado oriental da mesma avenida manteria, com alguma teimosia, muito do traçado medieval. Sendo senhorio de membros da nobreza, teria mais dificuldade em adaptar-se aos novos ventos que então sopravam (veja-se o traçado da Rua de São José, a principal via de acesso ao centro da cidade, anterior à Av. da Liberdade).
Rosa Araújo foi alvo de muitos agravos e até da alcunha de “cocó”, que resultava do facto do seu avô chamar da porta da sua confeitaria, à Rua de S. Nicolau (actuais nos. 43 e 45), os rapazes que por ali passeavam para lhes dar um rebuçado, ou seja, um “cocó” como os apelidava. Mas o processo era irreversível e a obra foi mesmo avante. Cinco anos passados, por ocasião das festividades que assinalavam o tricentenário de Camões em 1880, Rosa Araújo tomou parte muito activa nessa comemoração, envolvendo-se na criação do bairro Camões (lado oriental da Avenida). Lembremos que do lado ocidental, o Bairro acabaria por tomar o nome de Barata Salgueiro, o capitalista que promoveu a sua construção.
Rosa Araújo não recebeu qualquer título de nobreza.
Serve esta longa introdução para estabelecer o pano de fundo para os mais recentes desenvolvimentos sobre o episódio Rosa Araújo, vindos a lume no Público (11.09.2008, Ana Henriques):
"A Câmara quer acabar com esta rua?"
questionou Helena Roseta.
"Recuso-me a assumir o papel de tutor de estética"
disse vereador do Urbanismo [Manuel Salgado]**
A questão é a seguinte: deverá o presente ser um palimpsesto do passado? Parece-nos que não. Todavia se recordarmos o contexto em que se iniciaram as obras de demolição do Passeio Público em Lisboa (1879) ou a “nova” Barata Salgueiro (2008), temos como denominador comum, uma vontade de “modernização”, de dar uma “nova” utilização a um espaço pré-existente, que afinal ditará uma nova forma de viver.
A resposta à pergunta de Helena Roseta é, obviamente, não! A rua continuará a existir apesar de tudo. Mas não será a mesma rua em função da sua reconversão. Não será só pelos prédios crescerem, alguns deles passarem a comunicar entre si, ou passarem a ter outras funcionalidades (a habitação será relegada para um número perfeitamente residual, privilegiando-se os equipamentos hoteleiros e os escritórios), como acontecerá, com tantas outras ruas de Lisboa, uma via que exibe apenas, através das fachadas restauradas e ampliadas, a “citação” de um tempo que não volta mais. E os interiores? Esses serão completamente reformulados, num quadro de contemporaneidade, adaptados à respectiva função, ignorando que a arquitectura é um exercício TOTAL, numa articulação consistente entre o edificado exterior e o seu interior. Uma rua de “fachadas” Oitocentistas poderá ser interessante do ponto de vista de um equilíbrio estético que algumas cidades apresentam (exemplos de Paris, Londres, Amesterdão), mas que Lisboa efectivamente não tem. Mas essa razão não é suficiente para justificar uma espécie de “tudo é permitido”. Claro está que quando o arquitecto Manuel Salgado defende a integração de edifícios de estética pós-pombalina na Baixa, não refere que muitos resultam de feridas abertas no tecido de uma cidade que nunca soube viver com a conservação do edificado e a sua adaptação inteligente e funcional ao tempo de um qualquer presente. Preferiu-se sim delapidar o património edificado através de uma política de abstenção, para mais tarde conseguir erguer novos edifícios sem quaisquer preocupações de integração urbanística (ex.: sedes dos antigos bancos BNU e Totta & Açores, nas Rua Augusta e Rua do Ouro). Esta será, infelizmente, uma das dificuldades de classificação da Baixa a Património Mundial.
Quer isto dizer que a Rosa Araújo tem qualidade de “fachada” suficiente para que se elabore um projecto de grande dimensão, por uma firma de arquitectos de renome, assegurando certamente as contrapartidas financeiras que possibilitarão a sua concretização (imobiliárias e banca estarão em sintonia). A rua tem panache, sendo ela própria um pequeno boulevard, junto a um eixo de prestígio da cidade, o primeiro e único, esse sim boulevard, de Lisboa (ainda que à escala da cidade). Será por conseguinte interessante o investimento. O que espanta e se lamenta é a posição da Câmara Municipal, que mais parece um mero espectador do que um verdadeiro moderador. Não basta pagar indemnizações (algumas delas bem magras) aos antigos proprietários, selar as janelas e as portas dos edifícios, esperar pelos projectos imobiliários (que podem levar anos a concretizar), levando as ruas à sua triste morte, para depois, por arte de magia, tentar fazê-las renascer das cinzas e lançá-las a uma nova vida, dominada fortemente pelo terciário. Concordo com o autor do blog cidadania LX (ver abaixo) quando diz: “A cidade continua a desertificar-se e no local onde já há 20 hotéis fazem mais um. Os turistas em breve ficarão sozinhos a olhar uns para os outros, à procura de indígenas que passam nos autocarros cheios vindos dos subúrbios.” A ironia é essa, que cidade queremos nós? Que arquitectura queremos nós? Apenas fachadas com excrescências de tipo “contemporâneo”, do género faz de conta … ou uma cidade qualificada, no respeito do legado de qualidade que nos chegou (e não foi em grande abundância), convertendo-o sim, a novas funções sem negar a sua verdadeira génese. A Rosa Araújo merece que olhemos por ela com dignidade e não apenas com o juízo do mercantilismo latente que não tem uma ideia de cidade feita para quem a habita, mas apenas para quem se usa dela com manifesto desdém.
* Estas notas baseiam-se apenas no trecho da Rosa Araújo compreendido entre a Avenida da Liberdade e a Rua Mouzinho da Silveira.
** Não comentamos a citação atribuída ao arq.º Manuel Salgado
Interessante: CMLcidadania LXBusto de Rosa Araújo

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