2008-11-17

Recorde do "Suprematismo"

Kasimir Malevich, Composição Suprematista, 1916
Este quadro de Kasimir Malevich (1878-1945) foi vendido por $60 millhões, atingindo o valor mais alto pelo qual foi transaccionada uma obra deste autor. A Sotheby's consegue a extraordinária proeza de vender 45 pinturas, obras sobre papel e esculturas por $223.81 milhões (em tempos de reconhecida crise).

Suprematismo

2008-11-04

Palladio (1508-1580): de canteiro a teórico e arquitecto "uomo universale"

S. Giorgio Maggiore, Veneza, 1565
Andrea di Pietro della Gondola, nasceu no dia 30 de Novembro de 1508, em Pádua, uma possessão da República de Veneza (a “Sereníssima”). O jovem Andrea terá iniciado aos treze anos a sua aprendizagem como artífice da pedra na sua cidade natal, mudando-se posteriormente para Vicenza, ainda muito jovem, para trabalhar na mais importante oficina dedicada ao trabalho da pedra naquela cidade.

S. Giorgio Maggiore, alçado

Foi a partir de finais da década de 1530 que se verifica uma mudança na vida do até então desconhecido mas diligente artífice da pedra. Essa mudança coincide com o contacto que estabelece com Giangiorgio Trissino (1478-1550), humanista, dramaturgo, poeta, gramático e diplomata que viria a ser nobilitado em 1532 pelo imperador Carlos V, que o fez conde palatino. É exactamente na década de 1530 que Trissino (expulso de Veneza por razões políticas) decide efectuar obras de remodelação na sua villa de Sarago (na imediação de Vicenza), em que Andrea poderá ter trabalhado. Embora não haja documentação que ateste aquela possibilidade, existem historiadores que defendem que o desenho e proporções da Villa Trissino Trettenero estariam na génese do pensamento do futuro arquitecto. O que se sabe é que Trissino não só mudou o nome do jovem pedreiro - para Andrea Palladio - como lhe mudou a vida. Sabemos também que Palladio viajou com o seu mecenas e futuro amigo, durante a década de 1540, para Roma. Foram estas viagens iniciáticas que abriram novos horizontes e possibilidades àquele que viria a ser um dos mais famosos e influentes arquitectos de todos os tempos. Foi em Roma que Palladio conheceu, in loco, não só o legado arquitectónico da Antiguidade, tomando contacto com a gramática clássica herdeira de Vitrúvio (séc. I a. C.), como também com o edificado “moderno”, que havia apenas conhecido através dos desenhos de Sebastiano Serlio (1474-1554) autor do tratado I sette libri dell'architettura. Não é de excluir o papel de Trissino na formação humanista de Palladio e na sua orientação pela tratadística, designadamente a obra de Vitrúvio, De architectura libri decem ("Os Dez Livros da Arquitectura"), escrita em latim, língua que não sabemos se seria acessível ao jovem arquitecto. Em finais da década de 1540, parece provável que Palladio já tivesse acesso a traduções em italiano de trabalhos originais redigidos em grego e em latim. Acresce que o tratado do arquitecto florentino Leon Battista Alberti (1404-1472), De re aedificatoria, que começara a redigir em 1443, surgira já, em versão italiana em 1546. Não é de excluir igualmente que Palladio estaria ao corrente dos trabalhos pioneiros de Giulio Romano (1492-1546).

Villa Almerico Capra, chamada "A Rotonda", Vicenza, 1566

"A Rotonda", planta

A diferença mais evidente entre Palladio e os outros arquitectos mais ou menos seus contemporâneos, regista-se sobretudo a partir da década de 1540, quando começa a utilizar o “módulo”, sob diferentes formas e com diferentes aplicações práticas. Ele reconhecia no intercolúnio (distância entre as colunas) uma parte integrante da relação que estabelecia com cada uma das ordens, fosse ela jónica ou coríntia. A ordem tornava-se deste modo um potencial gerador de esquemas bi- e tri-dimensionais. Howard Burns, professor de história da arte (Univ. de Veneza) e especialista em arquitectura do Renascimento, defende que poderá existir uma relação directa entre a estrutura linguística desenvolvida por Trissino e a forma como Palladio desenvolveu a sua “gramática” arquitectónica, que tanto agradou aos intelectuais humanistas. Palladio promoveu um vocabulário assente num racionalismo “albertiano”, que incorporava princípios retirados da natureza, mas estruturados segundo a lógica da linguística humanista. Não será de estranhar as associações que podem ser estabelecidas entre a linguística e a matemática, ou entre a matemática e a música, pela repetição e aplicação de sistemas modulares com vista obtenção de ritmos coerentes, em verdadeiro equilíbrio lógico. No princípio da década de 1550, Palladio já tinha construído um número apreciável de villas destinadas aos ricos dignitários e nobres venezianos, como Daniele e Marc’Antonio Barbaro ou Giorgio Cornaro. As magníficas casas de campo que levam os nomes dos seus proprietários constituem não só uma amostra do maior significado, do período intermédio da carreira do arquitecto de Vicenza, como constituem os modelos que estarão na base do desenvolvimento da arquitectura ocidental, dos séculos seguintes. Em 1560 Palladio recebe a primeira encomenda para a execução de um trabalho em Veneza: a conclusão do refeitório do mosteiro de Santa Maria Maggiore. Outros trabalhos se seguirão, como o claustro de S.M. della Carita e a fachada de S. Francesco della Vigna. Mas os exemplos maiores da arte de Palladio em Veneza, são certamente S. Giorgio Maggiore, Il Redentore e S.M. della Presentazione (“Le Zitelle”). A sua obra é extensíssima, abrangendo arquitectura secular e religiosa, mas também pontes, e claro está o espaço cénico. Foi em 1570, que após vários anos de preparação, publica em Veneza, a sua obra teórica fundamental I Quattro Libri dell’architectura, na qual estabelecia os seus princípios fundamentais para a boa execução da arquitectura, acompanhada de desenhos e conselhos práticos dirigidos especialmente aos construtores.
É este arquitecto cuja lição foi apreendida por sucessivas gerações de arquitectos um pouco por todo o mundo, que agora celebramos no 500º aniversário do seu nascimento.

Andrea Palladio (Pádua 30 Nov. 1508 – Vicenza 19 Ago. 1580)

a não perder: Centro Internazionale di Studi di Architettura Andrea Palladio

2008-11-01

1 de Novembro

Nos chagrins, nos regrets, nos pertes sont sans nombre.

Le passé n’est pour nous qu’un triste souvenir;

Le présent est affreux s’il n’est point d’avenir,

Si la nuit du tombeau détruit l’être qui pense.

Un jour tout será bien, voilà notre esperance.

Tout est bien aujourd’hui, voilà l’illusion.

Les sages me trompaient, et Dieu seul a raison.

 

Voltaire, Poème sur le desastre de Lisbonne. Décembre, 1755

2008-10-25

Giovanni Bellini: a forma e o espírito

“E cumprindo-se os dias da purificação, segundo a lei de Moisés,

o levaram a Jerusalém para o apresentar ao Senhor” (Lucas 2:22).

O episódio da apresentação de Jesus no templo, encontra-se narrado no Evangelho segundo São Lucas (2:22-40). De acordo o texto sagrado, Maria e José, no 40º dia após o nascimento de Jesus, levaram-no ao templo, em cumprimento dos preceitos da lei de Moisés, por forma a assegurar a Purificação da mãe que dera à luz e como sinal de redenção do Menino, que nascera em Belém. No templo, encontraram Simeão “homem justo e temente a Deus” (Lucas 2:25), que não encontraria a morte antes ter visto o Cristo do Senhor. Simeão tomando a criança nos braços, louvou a Deus e disse:

«Nunc dimittis servum tuum, Domine, secundum verbum tuum in pace / Quia viderunt oculi mei salutare tuum / Quod parasti ante faciem omnium populorum / Lumen ad revelationem gentium, et gloriam plebis tuae Israel» (Lucas 2: 29-32)

Estava igualmente presente no templo a profetiza Ana, já de idade avançada (quase oitenta anos), “e sobrevindo na mesma hora, ela dava graças a Deus, e falava dele a todos os que esperavam a redenção em Jerusalém” (Lucas 2: 38).

Giovanni Bellini. Apresentação de Jesus no Templo. Têmpera sobre madeira. 80 x 105 cm. Fondazione Querini-Stampalia, Veneza

É este o episódio que Giovanni Bellini (1430-1516) retrata na Apresentação de Jesus no Templo, obra cuja datação continua tema de controvérsia, oscilando entre 1453 e 1480, segundo os vários estudiosos da obra do mestre veneziano. Inicialmente atribuída a Andrea Mantegna (1431-1506), seu cunhado, muito por culpa de uma inscrição na tábua, provavelmente setecentista, em que figura o nome de Mantegna, viria a confirmar-se agora, através de exame radiográfico, a indiscutível autoria de Giovanni Bellini, tanto pela sua assinatura como pelo magnífico desenho subjacente.

Andrea Mantegna. Apresentação de Jesus no Templo. c. 1465-66. Óleo sobre tela. 69x86,3 cm. Gemäldegalerie, Berlim

Tudo aponta para que o trabalho de Mantegna seja anterior ao de Bellini e como tal este lhe seja devedor. Sabemos como ambos os artistas comunhavam idênticas preocupações no âmbito da pintura. Todavia, embora próximos, não podemos deixar de reconhecer um cariz muito particular a cada um dos artistas nas respectivas obras. Tomemos como exemplo as duas pinturas executadas em datas que acreditamos ser não muito distantes, sobre um mesmo tema religioso. A questão iconográfica parece-nos um excelente ponto de partida, uma vez que se apresenta como uma “citação” do Evangelho segundo São Lucas, mais concretamente a “Apresentação de Jesus no Templo” (2:22-24) e “Simeão e Ana” (2:25-38). Tal como referimos acima, o texto bíblico identifica cinco personagens, divididos em dois núcleos específicos: o primeiro, constituído por Maria, Jesus e José (a Sagrada Família); e o segundo, por Simeão (o justo) e Ana (a velha profetiza). Na tela de Mantegna encontramos a Sagrada Família, sendo que Maria, o pequeno Jesus enfaixado, segundo a tradição judaica, e Simeão, ocupam o primeiro plano da composição e José – em posição central - ocupa o segundo. Regista-se ainda um terceiro plano, em que uma personagem feminina e outra masculina ocupam, respectivamente, os extremos esquerdo e direito do quadro. No esquerdo, a personagem feminina poderá seguramente tratar-se de Ana, embora a sua juventude não esteja de acordo como texto bíblico; enquanto no direito, subsistem dúvidas quanto à entidade da personagem, que muitos pensam tratar-se do próprio Mantegna, que atendendo à datação da tela, teria por essa altura cerca de 25-26 anos. Atente-se ainda à composição: existe uma expécie de triangulação criada pelo grupo Maria / Menino num dos vértices, frente a Simeão, estando José no terceiro, em fundo. A articulação dos olhares entre estes personagens, todos aurelados, estabelece uma tensão e um dramatismo acentuados pela expressão grave sobretudo de José. Os dois personagens dos extremos, olham no sentido da esquerda, como que alheios ao episódio narrado, que podemos interpretar como uma antevisão de acontecimentos futuros. Analisemos agora a tábua de Bellini, decerto de feitura posterior: a organização dos personagens é idêntica à de Mantegna, embora com variantes: Maria com o Menino e Simeão em primeiro plano. É extraordinária a semelhança de Maria e o diálogo que estabelece como Simeão. Regista-se uma maior simplicidade da indumentária, em que o brocado de seda das vestes das personagens de Mantegna, tão ao gosto veneziano, dá lugar a um tratamento mais despojado por parte de Bellini, sobretudo na representação de Maria. Claramente, em segundo plano, o pintor veneziano coloca também nos extremos da composição duas personagens: à direita a figura feminina que pensamos tratar-se de Ana, e à esquerda uma figura masculina, que nos olha impiedosamente. Em terceiro plano, ao centro, a figura de José, de expressão benigna, atento a Simeão. Entrevemos ainda de cada lado de José, em plano ligeiramente mais recuado, à direita, uma figura feminina jovem, cujo olhar se dirige para o exterior do quadro, enquanto do outro lado, um homem ainda jovem parece olhar na direcção de José. Também aqui temos uma triangulação entre os personagens “principais” da narrativa segundo o texto bíblico: Maria e Simeão entreolham-se tendo em fundo José. O efeito dessa triangulação em ambas as pinturas é ligeiramente destabilizado pela presença do Jesus Menino, acentuando o carácter dramático deste episódio bíblico. O fundo negro nas duas pinturas acentua o recorte das personagens, contribuindo igualmente para intensificar a luminosidade do espaço pictórico, de maior intensidade, na tábua de Bellini, que o tampo de mármore atravessando todo o plano inferior do quadro, pretende atenuar.

Embora a composição de Bellini seja devedora de Mantegna, não podemos deixar de fazer notar a forma magnífica como o primeiro organiza um espaço tão populado de figuras, conferindo-lhes uma carga dramática tão de acordo com o texto do Evangelho, embora recorrendo a uma “modernidade” própria do Renascimento, através da introdução no espaço pictórico de figuras alheias à narrativa religiosa, mas que com ela comungam de forma a reforçar o pathos que tão laboriosamente o pintor procura veicular.

Tal como já acontecera anteriormente em Agonia no horto, obra de c. 1465, também na Apesentação de Jesus no Templo, julgamos que Bellini sai vencedor nas soluções que encontra no seio da pintura, face ao seu parente do Veneto. Bellini continuará posteriormente a desenvolver o seu prodigioso talento de pintor em obras tão significativas quanto a Virgem e o Menino no Trono, 1488 (Frari, Veneza), O Êxtase de S. Francisco, 1485 (Frick Collection, Nova Iorque) ou A Virgem no Trono com Santos, 1505 (São Zacarias, Veneza), entre outras, que o afirmam como o pintor fundamental para Veneza como outrora Giotto fora para a pintura florentina e cuja continuidade fica bem patente nas obras dos seus seguidores, Giorgione ou Ticiano.

A obra de Bellini está patente na exposição que está patente na Squderie do Quirinale, Roma.

Mais Giovanni Bellini

13 no prédio acaba hoje, 26 de Outubro

2008-10-21

O estado de Lisboa

Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet, Retrato do Marquês de Pombal, 1767, óleo sobre tela. Oeiras, Palácio dos Marqueses de Pombal, Oeiras
Confesso que ia escrever exclusivamente sobre a Baixa de Lisboa e o seu deplorável estado de conservação, quando li no Expresso online o artigo de Miguel Sousa Tavares "Assalto a Lisboa" sobre a projectada “invasão” de contentores no porto de Lisboa, junto a Alcântara (20 Out. 2008). Entretanto, senti-me tal como muitos dos leitores (ver comentários) arrebatado, como que disposto a partir para uma qualquer luta em defesa dos interesses da minha cidade, que é afinal o mesmo que defender os interesses dos que aqui moram, que aqui trabalham ou que por aqui passam, e são muitos milhões todos os anos. Seria uma resposta às perguntas que MST formula já no fim do artigo a título de provocação: “É assim que se trata de Lisboa. É ou não é escandaloso? E o que fazemos, ficamos quietos?”. O que vemos afinal? A degradação, a indiferença, aliadas a uma espécie de libreto de opera buffa, em que da decadência, sem retorno, nos acenam com projectos e mais projectos, de tantos milhões, que não conseguimos digerir a sua bondade e alcance. Tal como para a Baixa, também para a frente ribeirinha, para Alcântara, para o Campo das Cebolas e Santa Apolónia, desenham-se novas formas de cidade. Desenhos que o tempo já viu esfumarem-se, sem concretização, sem fôlego, toldados pelo lodo, como no Cais das Colunas. As palavras de MST parecem magistrais, pela aturada investigação, pela identificação dos personagens, entidades e interesses em jogo, pelos sinais de alerta, que aliás começam a ter ecos nos vários comentários políticos tanto em blogs como em jornais (cf. Mário Soares, in DN online, 21.10.08). Alertar, apontar o dedo, criticar e apresentar soluções é o que se difunde com mais agudeza e rapidez. Todavia faz-nos falta o poder de congregar essas vozes e fazê-las ouvir por quem é eleito com os nossos votos. Tornar a massa crítica de quem levanta problemas e identifica compadrios, num movimento temível, por que esclarecido na sua vontade de que se faça o melhor pela sua cidade, por todos afinal. Julgo que é isso que move muitos de nós a escrever. Mas penso também que faz falta a acção mobilizadora de criar obstáculo à transgressão, à incompetência, ao erro.

2008-10-18

A procura da felicidade

É em tempos de crise que procuramos dar sentido à nossa existência, ao nosso quotidiano tão cheio de avanços e recuos, à vontade de concretizações que nos transportem para um qualquer Walhalla onde possamos beber o leite e o mel. Todavia, algo amaldiçoa a nossa condição humana, trazendo à colação o fantasma da adversidade, vestido de negro, associando-o à verdadeira catástrofe, a algo inimaginável, cuja concretização deverá ocorrer em concomitância com os nossos comiseráreis quotidianos, pondo assim em causa a nossa felicidade. Nem o optimismo nos salva dos prognósticos sérios e avisados dos economistas e comentadores, esses novos gurus que vieram substituir teólogos e filósofos, impondo uma nova regra, tão pragmática quanto implacável, segundo a qual a felicidade estará necessariamente “indexada” à nossa capacidade de possuir e de, apesar de tudo, prosseguir na senda imparável do progresso. As necessárias conclusões a tirar no quadro da monumental falência dos nossos sistemas políticos e económicos, enredam-se na constatação de que cada homem está cada vez mais só e cada vez mais entregue a si próprio e à sua sorte. Sem deus e sem estado providência, como poderá o homem sobreviver num quadro global hostil e ainda assim procurar atingir a tão desejada felicidade? Como poderemos antever a resposta não será fácil. Mas, em tempos de crises várias, um pouco por toda a parte, surgem astrólogos, videntes e quiromantes dispostos a contribuir para encontrar caminhos e soluções. Lembro-me, que numa viagem aos Estados Unidos este verão (antes da “crise”), não pude deixar de verificar que o número considerável de “lojas” de videntes quase rivalizava com o dos estabelecimentos que se dedicavam a sofisticados tratamentos capilares, corporais ou das famigeradas “nails”. Há uma mudança de paradigma na procura da felicidade (um tanto fim-de-mundista). Lembro também a propósito de tudo isto o notável livro de Eric Weiner, The Geography of Bliss (Twelve: New York, 2008), no qual se procura encontrar uma relação entre geografia e felicidade. O autor, que foi correspondente no estrangeiro do National Public Radio (EUA), analisa países tão dispares quanto a Holanda ou o Butão, a Islândia ou a Moldávia, passando ainda em revista a Suíça, o Qatar, a Tailândia, a Grã-Bretanha, a Índia e os Estados Unidos. Fiquei convencido, após ler este livro, que “não existe tal coisa como felicidade pessoal”. A felicidade “é algo cem por cento relacional” (p. 324). Acresce que ninguém aguentaria uma vida de “felicidade plena” seria uma espécie de “inferno na terra” pelo que a felicidade só poderá ser valorizada pela experiência do seu contrário, embora tenhamos como certo que vale a pena prosseguir a procura da sua concretização plena. Haverá então que ter confiança, embora esta não seja “um ideal da razão, mas sim da imaginação” (p. 154, citando Kant). Continuemos portanto a acreditar que a felicidade é algo atingível, e que estará por certo do outro lado do arco-íris, uma vez passada a tempestade. Vale-nos a crença na imaginação.

2008-10-16

ainda os graffitis ... e o Bairro Alto

O pobre Bairro Alto
A Câmara Municipal de Lisboa anunciou hoje medidas para procurar por cobro à situação calamitosa a que chegou o Bairro Alto, vítima da "invasão" graffiteira que nada poupa na sua voragem. Recordam-se abaixo alguns "posts" que continuam válidos. (Cf. DN "Uma fachada não fica limpa muito tempo", 16.10.08).

2008-10-15

Acabei de ler:

Ian Kelly, Cooking for Kings: The Life of Antonin Careme, the First Celebrity Chef : Walker & Company, New York, 2005, pp. 301
Antonin Carême (baptizado Marie Antoine Carême, nasc.? – fal. 1833 ) foi o primeiro chefe no verdadeiro sentido da palavra. Foi também o primeiro chefe a enriquecer e a publicar livros de cozinha. A sua ascensão é notável. Da criança abandonada nas ruas da Paris revolucionária, em 1792 (desconhece-se a data do seu nascimento), até à confirmação do chefe de excepção e ao seu reconhecimento generalizado como um dos expoentes máximos da arte da cozinha. Aprendeu pastelaria com o homem que o tirou da rua, mas a sua obsessão foram as sopas. Aos 25 anos já era uma figura conhecida e prestigiada na Paris napoleónica, conhecido pelas suas pièces montées, também chamadas de extraordinaires que eram "extraordinárias" peças de aparato, em grande escala, feitas de massa de confeiteiro coberta de açúcar e que serviam de verdadeiros centros de mesa. As pièces de Carême tomavam múltiplas formas, podendo mesmo constituir verdadeiras arquitecturas. O jovem cozinheiro passou muitas horas na biblioteca pública de Paris estudando os tratados de arquitectura, as plantas e os alçados que viria a utilizar nas suas próprias construções em massapão, cremes e frutos. Foi ele que executou o bolo de casamento para Jerome Bonaparte, irmão do imperador. Na qualidade de chef de Talleyrand, um verdadeiro ministro, anfitrião dos mais altos dignitários estrangeiros, preparou ementas surpreendentes e serviu lautos repastos. Trabalhou também para o Príncipe de Gales, futuro Jorge IV, em Brighton, para o czar Nicolau I, em São Petersburgo, e para corte austríaca, em Viena. Já em 1823, viria a ser contratado por Jacob de Rothschild, na procura de aceitação pela sociedade parisiense, sempre tão exigente à mesa e tão pronta a reconhecer os méritos culinários de quem a poderia ainda surpreender. Foi Carême o inventor do merengue e do vol-au-vent, mas também do chapéu de cozinheiro. Foi ainda autor, entre outras obras, de L’Art de la Cuisine fançaise au dix-neuvième siècle. O autor de Cooking for Kings, Ian Kelly, fornece-nos ainda muitas receitas do mestre e ilustrações que contribuem para tornar ainda mais viva esta excelente biografia de um personagem tão apaixonante, que se lê de um só fôlego. 

2008-10-12

Andrea Mantegna "invenit"

Andrea Mantegna, Agonia no horto, c. 1457-59 (Tours)
Andrea Mantegna, Agonia no horto, c. 1460 (Londres)
A propósito da exposição  Mantegna no Museu do Louvre, vale a pena trazer aqui esta versão de Agonia no horto, pintada em c. 1460, que se encontra na National Gallery de Londres e que antecedeu, em cerca de dois anos, uma outra pintura, com o mesmo tema, que Mantegna executou  (Museu de Tours). Do meu ponto de vista a versão londrina é mais eloquente na organização do espaço pictórico, num ziguezagueado ascendente, introduzindo várias narrativas: em primeiro plano, os apóstolos adormecidos; em plano de fundo, ao longe, Judas e um conjunto de guardas, deslocando-se na direcção de Cristo, provavelmente para o prender; em plano superior Jesus encontra-se em oração, face a um grupo de anjos, um deles apoiando-se numa cruz, símbolo da paixão.
Giovanni Bellini, Agonia no hortoc. 1465 (Londres)
As duas pinturas de Mantegna antecedem uma outra, com o mesmo tema, desta vez do veneziano Giovanni Bellini (cunhado de Mantegna), pintada c. 1460 (National Gallery, Londres). A representação de Bellini segue idêntico esquema compositivo, embora mais simplificado, favorecendo a cor, a representação de um céu "naturalista" (nascer do dia) e a diáfona presença de um anjo que exibe os atributos do sacrifício. Presume-se que tanto Mantegna como Bellini sejam devedores de um desenho de Jacopo Bellini, sogro do primeiro e pai do segundo, com o mesmo tema. A exposição de Paris reune um significativo número de obras de Mantegna (1430/1-150), artista nascido no norte de Itália, na região de Pádua e que se notabilizou como pintor, gravador e amante do "antigo" e dos clássicos, nas cortes dos Gonzaga e dos Este .

2008-10-10

Medalha de ouro para Siza

Adega em Campo Maior, arq. Álvaro Siza
He should make anyone proud to be, or want to be, an architect Jonathan Glancey, The Guardian
O arquitecto Siza Vieira acaba de ser galardoado com o prestigioso prémio RIBA (Royal Institute of British Architects) para o conjunto da sua obra. O arquitecto, que não tem obra construída no Reino Unido, participou com Souto Moura no projecto Summer Pavillion levado a cabo pela Serpentine Gallery, Londres (2005). Todos os anos, arquitectos de renome internacional, são convidados para dar corpo a uma estructura temporária que é erguida nos Jardins do Palácio de Kensington (Julho a Outubro). A edição do ano passado (2008), a oitava, contou com a participação do arquitecto Frank Gehrry. O Summer Pavillion passou a fazer parte do roteiro cultural de Londres durante o verão. Convirá não esquercer que a Serpentine Gallery é uma das mais reconhecidas galerias de Londres, com uma programação de grande qualidade. As suas exposições são imperdíveis.

2008-10-06

Fios de muitos embaraços III

Fios de muitos embaraços II

Rua 5 de Outubro
Rua Elias Garcia
Rua de S. Mamede ao Caldas
Rua da Saudade

Fios de muitos embaraços I

Rua Marquês de Tomar
Há mistérios insondáveis. Interrogo-me várias vezes sobre o porquê de existirem tantos prédios antigos com fios soltos, sejam eles de telefones, de televisão, eléctricos e tantos outros, que nem consigo identificar para que servem, tal o emaranhado, excrescendo das fachadas. Será que tudo funciona? O mistério adensa-se com o passar do tempo, pois grande parte desses verdadeiros “novelos” permanecem durante anos, sem que nada aconteça. Muitos dos fios são puxados, repuxados e a confusão instala-se. Os prédios novos não registam estes “embaraços”, uma vez que os projectos de construção previram as várias necessidades da vida moderna, em que um simples cabo é veículo de múltiplos confortos, da televisão por cabo à Internet, passando pelo inevitável telefone fixo. Todavia, aos edifícios mais velhos, concebidos noutros tempos, de mais parcas comodidades, são-lhe sucessivamente acrescentados cabos, fios e outras utilidades, à medida das exigências dos seus ocupantes, sejam eles arrendatários ou proprietários, de diferentes gerações, etnias, culturas ou estratos sociais. Podemos constatar que o caos se instalou, principalmente, depois desses edifícios serem sujeitos a obras exteriores, sejam elas estruturais ou de simples cosmética. Será assim tão difícil reconstituir as instalações, depois de pintadas as fachadas, as janelas e vãos, varandins e outros elementos arquitectónicos? Pensamos que não. Mas então porque será que tal não é feito? E a supervisão das obras, não garante que todo os fios fiquem adequadamente presos às fachadas? Até mesmo nos edifícios públicos, propriedade das autarquias ou do Estado? Algo de muito estranho se está a passar pois o fenómeno tende a alastrar.
obrigado pelo "Desassossego".

2008-10-05

‘I don't give a shit but I care quite a lot.' Richard Serra

Elevational Mass, 2006, Aço, 152.4 x 213.4 x 182.9 cm
Porque será que Richard Serra nunca recebeu uma encomenda da Tate Modern para produzir um trabalho site specific destinado à grande nave da turbina? A pergunta é dirigida por Adrian Searle (crítico de arte do Guardian) a Richard Serra, numa das raras entrevistas concedidas pelo escultor americano nas vésperas da inauguração da sua exposição da Gagosian Gallery, em Londres. Serra responde: “eu não digo nada, mas fico satisfeito que você coloque a questão”.
Seguem-se alguns excertos da entrevista que pode ser lida na totalidade na edição do Guardian online (5 Out 08):
“Não me considero um artista político, mas tudo aquilo que possa contribuir para fazer a diferença, farei. A América é um país de direita e eu sou essencialmente da velha esquerda.”
“Tenho uma certa obstinação, um certo voluntarismo que me arranjou problemas, mas que também me tem ajudado “.
....
Acerca da peça de Serra que recebeu o título “Fernando Pessoa”, Adrian Searle adianta: “há qualquer coisa de Orwelliano nesta peça, embora tenha sido intitulada em honra do escritor português, autor do Livro do Desassossego [Serra] diz que a relação é tangencial: o [escultor] estava a ler o livro enquanto fazia a peça, avisando que “não se deve ler demasiado nos meus títulos.” Searle recorda que no passado o escultor já dedicara trabalhos a Charlie Chaplin e a Buster Keaton, ao realizador alemão Rainer Werner Fassbinder e ao crítico de arte David Sylvester). O entrevistador reconhece que a peça de Serra é poderosa; numa alusão a fundições e a estaleiros navais, ao Muro de Berlim e à grande divisória construída pelos israelitas que serpenteia pelos territórios palestinianos. Searle alerta-nos para o facto de tudo isto poder causar consternação a todos aqueles que preferem que a arte tenha a ambição de elevar o espírito.
Para Serra “a função da arte não é ser agradável”, acrescentando polémica com a declaração: “a arte não é democrática. Não é para o povo”.
….
"Kill Serra" (Matem Serra). As pessoas ameaçavam que queriam matar-me. Eu fazia arte em Nova Iorque. Isso é um pouco extremista, não acha?”
….
“Foram certamente as curvas”. Quando mostrei pela primeira vez Torqued Ellipses, há dez anos, em Nova Iorque, havia o sentimento que as pessoas reagiam ao trabalho de forma diferente. As pessoas reagiam de forma diferente às curvas do que tinham reagido às linhas rectas. Era inédito. O Modernismo foi o ângulo recto; todo o século XX foi o ângulo recto.”
….
“Cresci pobre mas o ambiente era rico. Parecia que havia sempre discussões políticas lá em casa; debates sobre que tipo de vida que devia ser vivida. O lugar de onde vens confere significado ao que fazes. Julgo que foi assim para mim. Sou obstinado, disso tenho a certeza.”
….
Insiste: “As pessoas estavam preparadas para as formas curvas” …. “Eu era ainda muito jovem, tentava ser pintor, quando fui a atingido de forma fulgurante. Demorei-me na sua apreciação [Las Meninas] até que percebi que eu era uma extensão do quadro. Uma verdadeira revelação. Nunca tinha visto nada igual, o que me fez pensar sobre a arte e sobre o que estava a fazer, de uma forma radicalmente diferente. Mas primeiro, lançou-me num estado de total confusão.” …. “No meu trabalho mais tardio, a pessoa que navega no espaço, a sua experiência torna-se conteúdo. Então, toda a relação sujeito-objecto é invertida. O conteúdo é você! Se não caminhar na direcção do trabalho e interagir com ele, não existe conteúdo. Foi exactamente com isso que eu tive que lidar a partir do momento em que vi pela primeira vez o quadro de Velasquez.” .... “Os bailarinos foram os mais radicais. Ensinaram-me mais sobre espaço, movimento e gravidade do que quaisquer outros.” .... A propósito da exposição no Grand Palais, Paris (2006): “Meu caro, isso foi andar na corda bamba. Não havia forma de disfarçar o que fosse. O espaço era grandioso. Não sabíamos se a peça ia funcionar até à instalação da primeira placa. Foi uma das experiências mais gloriosas de toda a minha vida, quando me apercebi que funcionava. Foi talvez a primeira vez em que pensei que havia feito algo melhor do que eu próprio enquanto pessoa.”
nuvens roçam além chamas avermelhadas/ como a maré na praia ondulam/ sempre altas, inconstantes ... 
Hölderlin

2008-10-03

Acabei de ler:

Ian Kelly, Casanova, Hodder & Stoughton Ltd, 2008, 416 pp.
“Every man is three people; the man as he sees himself, the man as others see him, and the man as he really is.” (Don Giovanni)
A figura de Giacomo Casanova (1725-1798) tem motivado ao longo da história, discussões acesas e reacções apaixonadas, que o colocam entre as personagens mais amadas e odiadas de todos os tempos. O veneziano, nascido no primeiro quartel do século XVIII, no seio de uma família de actores é, incontestavelmente, uma figura controversa, à qual não podemos ficar indiferentes. Mesmo quando aderimos ao seu universo, verdadeiramente sedutor, que Ian Kelly reproduz na perfeição, quando conhecemos os seus impulsos, a sua genialidade criativa, o seu epicurismo levado a extremos em todos os patamares da sensualidade, não podemos também deixar de registar o seu lado mais obscuro, que se pode revelar verdadeiramente negro, perverso e marcadamente reprovável para o espírito contemporâneo. O historiador Ian Kelly, aqui tornado biógrafo, traça o itinerário da vida de Casanova, desde o seu nascimento, em Veneza, até à sua morte em Praga, aos 49 anos. O período que medeia estas duas balizas cronológicas, assenta não só nas memórias que o próprio Casanova nos deixou, mais de 3600 páginas onde se registam centenas de episódios da sua vida sentimental e sexual, a maioria com mulheres, mas também alguns, poucos, com homens; onde se relatam as suas experiências gastronómicas e os inúmeros enredos de natureza pessoal e alguns em contexto diplomático e/ou político. Apesar da vivacidade do texto de Casanova e da extraordinária crónica de costumes que contém, as suas palavras deverão ser lidas com prudência e distanciamento em relação ao próprio personagem que o autor descreve na primeira pessoa. É aqui que reside o notável trabalho de Kelly, ao cruzar as palavras do veneziano com outras fontes coevas, podendo em algumas ocasiões comprovar, documentalmente, alguns relatos que contemporâneos de Casanova, atribuíram à sua muito prolífica imaginação e que agora, pela primeira vez, se transformam em factos históricos. Trata-se de uma obra de referência para o entendimento de um personagem digno de libreto de ópera (actividade em que aliás terá participado …), ele que foi poeta, dramaturgo, matemático, filósofo, que criou lotarias, que ganhou e perdeu enormes fortunas, que iniciou uma formação eclesiástica para mais tarde se “perder” nos meandros da cabala, que gozou os prazeres eróticos das suas múltiplas experiências amorosas até definhar, vítima de um envelhecimento precoce, na enfermidade e na solidão. O retrato que fica é o do ocaso do Ancien Régime, do abismo que separava as elites dos restantes estratos sociais, do luxo e da miséria excessiva e imunda das ruas de Veneza, das festas populares, do teatro e da ópera, das cidades que Casanova visitou: Paris, Londres, São Petersburgo, Constantinopla entre muitas outras (terá percorrido 64.060 kms durante a sua vida), mas também o de um homem que tal como o regime político que o vira nascer, acaberia também ele próprio por desaparecer vítima da insaciável voragem do tempo.

2008-09-30

“Silence is so accurate” (Mark Rothko)

De origem judia, emigrado do ainda império russo com a família para os Estados Unidos, em 1913, Rothko é um dos nomes incontornáveis do designado Expressionismo Abstracto (movimento com origem nos EUA, no pós II Guerra Mundial), que integra nomes como Jackson Pollock, Jean Dubuffet, Franz Kline, de Kooning, entre outros).
O Expressionismo Abstracto tem como campo privilegiado a pintura. Algo de comum a todos os artistas que abraçaram este movimento artístico é a importância dada à superfície da tela como um todo. Não há um lugar especialmente importante, como o centro, por exemplo, onde o pintor concentre a sua atenção e assim conduza a atenção do observador. A tela torna-se uma espécie de “campo de combate” onde toda a acção se desenrola; onde a cor encontra o seu verdadeiro lugar. É esse o espaço do referente, que reside no seio da própria pintura e não exteriormente a ela. Existe uma espécie de “virtude” neste espaço quase sagrado que é, de facto, onde tudo se desenrola; onde a pintura verdadeiramente acontece.
É importante em Rothko a sua visão do mito (certamente inspirada na obra de Nietzsche) como instrumento estruturante em tempos de crise da espiritualidade, como se houvesse um vazio que é imperioso preencher. Esse vazio é preenchido pela cor, que se torna instrumental, percorrendo paletas quentes e luminosas, que podem dar lugar a atmosferas frias e sombrias que provocam em nós, simples mortais, sensações que oscilam entre o conforto e o desconforto, entre o êxtase e a depressão, entre a vontade de entrarmos na superfície da tela e nos perdermos na inebriante imensidão cromática que se torna a razão de ser da pintura. O que permanece sempre na pintura de Rothko é o silêncio. Profundo, exacto, inalterável.
É por tudo isto que a exposição recentemente inaugurada na Tate Modern, em Londres (26 de Setembro de 2008 a 1 de Fevereiro de 2009) é absolutamente fundamental para confirmar a vitalidade da pintura de Rothko no início do século XXI. A exposição apresenta a excelente colecção da Tate em confronto, pela primeira vez, com os “Seagram Murals” concebidos para o restaurante The Four Seasons (Edifício Seagram, em Nova Iorque) a que se juntam outras séries: Black-form paintings, os trabalhos de grande escala, em papel (série castanha e série cinza), e ainda a última série de pinturas Preto sobre cinzento, realizada já no fim da sua vida entre 1958-1970.

2008-09-29

Os azulejos de Maria Keil

Confesso que estive muito tentado a assinar a petição online que dava conta da “injustiça” cometida com Maria Keil e os seus painéis de azulejos destruídos pelo Metropolitano de Lisboa. É difícil não seguir o apelo daquilo que consideramos justo, sobretudo se o infractor for uma entidade, mais ou menos poderosa, um tanto parda, na medida em que temos dificuldade em materializar a identidade dos seus responsáveis, sejam eles conselhos de administração, presidentes ou CEO(s). Ainda por cima a artista Maria Keil, senhora que já ultrapassou os 90 anos, figura que granjeou a nossa simpatia colectiva, através das suas ilustrações (muitas delas para livros infantis, que “formataram” muito do nosso imaginário) e da presença na cidade de muitos marcos daquilo que hoje se escolheu designar de “arte pública”, tornaria ainda mais válida a nossa repulsa por tão vis actos e afrontas. Sei que referir tudo isto depois da notícia vir a lume este sábado, no Expresso, parece um exercício de oportunismo e petulante clarividência. Confesso que não é. Antes de Maria Keil ter destruído a polémica – ela que nem foi consultada pelos autores da petição – sobre a história dos azulejos, da sua destruição, da forma como não teria sido compensada, etc., procurei documentar-me sobre o assunto. Ao fazê-lo, foi-me dito que o assunto estava ultrapassado há anos. Pude mesmo constatar que o próprio Museu do Azulejo é detentor dos desenhos que a artista concebeu para a execução dos famigerados painéis e que nunca houve um “caso” levantado por Maria Keil: “Em que mundo é que vivemos, que põem coisas assim na internet sem falar com ninguém?” (Maria Keil, in Expresso, 27-09-08). O que podemos retirar de tudo isto? Em primeiro lugar, o método: blogs e mails funcionam como rastilhos, bastando para isso lançar suspeitas, o resto é feito pelos próprios nautas, que se encarregam da propagação, muitas das vezes, automaticamente, sem mesmo ler o correio recebido; e em segundo lugar, o conteúdo: chega-nos um pouco de tudo, apelando à costumeira sinergia de grupo, maioritariamente acrítica, empolgando-se por causas “públicas”, ao alcance de um qualquer indicador, naturalmente acéfalo.

2008-09-26

"Logo a abrir, pareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal." 
 José Cardoso Pires. Lisboa - Livro de Bordo: vozes, olhares, comemorações 3 ed. Lisboa: Dom Quixote, 1998, p. 7.

2008-09-24

Graffitis em Lisboa e “O mistério das portas azuis”

Obrigado à Time Out e à República dos Corvos por desvendar, no número do seu 1º aniversário (Parabéns, Parabéns), o mistério das portas azuis. A responsabilidade é de Eko Five (32 anos, vive e trabalha em Espanha). Tal como diz à revista: “Isto não é uma brincadeira de putos. É agarrar nos prédios devolutos e, sem estragar as fachadas, embelezá-los. Não estragamos património, respeitamos muito as fachadas dos prédios”. O colectivo de artistas responsável pela intervenção refere ainda não desanimar quando os seus graffitis foram invadidos por “tags”: “Voltámos lá e pintámos por cima …”. Este poderá ser um tipo de intervenção que a cidade precisa. O campo é fértil. Ver assuntos relacionados neste blog: Graffitis e caca de cão I.

2008-09-22

Reconversão de lugares de culto religioso – irrelevância do espaço sagrado e o pragmatismo contemporâneo.

Para o homem primordial o mundo era habitado por muitos deuses. As suas casas eram lugares imensos, como a própria Natureza. Era então difícil ao Homem abarcar a ideia de domesticar esses entes, ou trazê-los para a vivência do seu quotidiano. Assim, eles tornaram-se o próprio sol, ou assumiram as qualidades dos elementos: fogo, terra, ar, água. A estes, juntaram-se muitos outros e com a sedentarização das comunidades humanas foram-se também reservando “espaços” para os evocar e adorar. Aos deuses antigos juntaram-se novos, na constante procura do entendimento da razão da existência e dos seus fenómenos. As grandes civilizações, primeiro as orientais, depois as próximas da bacia do mar Mediterrâneo, procuravam adorar os seus deuses e divindades adoptando lugares que pela sua posição geográfica permitiam uma maior interacção com essas entidades. O Olimpo e a sua contrapartida terrena é produto da civilização grega que assim assimilava um legado milenar, dando-lhe um significado verdadeiramente novo. Torna-se fundamental assumir uma vivência cultual que se materializa e dissemina através da construção de altares e templos cujas fundações cresciam sobre um chão que se tornava sagrado. Mas será em Roma, pátria do pragmatismo, onde nascerá um templo dedicado a todos os deuses, o Panteão. O templo inicialmente mandado construir por Agripa no rescaldo na batalha de Actium (31 a. C.) pereceu num incêndio (80 d. C.). Coube então ao imperador Adriano (76-138 d. C.) a ideia de o reconstruir, no mesmo local, ou seja, no mesmo chão sagrado, a partir de 125 d. C., o monumental edifício que chegou aos nossos dias. Ao reconstruir o templo no mesmo chão onde se erguera o anterior, o pantheon saía reforçado na sua sacralidade. Adriano pede ao arquitecto que incorpore na nova fachada a referência a Agripa, que fora afinal o construtor do templo destruído: M·AGRIPPA·L·F·COS·TERTIVM·FECIT (Marcus Agrippa, Lucii filius, consul tertium fecit). O edifício viria a ser reparado em 202 d. C. durante o consulado do imperador Caracala. Em 609 o edifício é doado pelo então imperador bizantino ao Papa Bonifácio IV que o consagra ao culto cristão, assumindo o templo o nome de igreja de Santa Maria dos Mártires. A importância do Panteão no fixar de uma nova gramática construtiva é da maior relevância para os artistas do Renascimento, sobretudo para os arquitectos, como Brunelleschi que percebe parte da solução construtiva da magnífica abóboda. Os resultados práticos da sua investigação podem ainda hoje ser observados em Florença, no Duomo (Santa Maria del Fiore). É no panteão que são tumulados pintores como Rafael e Anibal Carracci ou os reis de Itália Vítor Emanuel II e Humberto I. Isto para dizer que a sacralização do templo não se perdeu na voragem do tempo, o templo continua lá, embora seja hoje um lugar de peregrinatio para turistas de todos mundo, de todas as culturas e cultos, recebendo-os a todos como aliás fizera já, em tempo remotos, a todos deuses. Claro está que outros edifícios de assumida grandeza, como lugares de culto, sofreram percursos análogos ao longo da história. Alguns interrompendo ou anulando a sua razão de existir, por períodos variáveis, conforme a história desenha o seu obstinado itinerário. Exemplo relevante é o Parténon (séc. V a. C.) na acrópole em Atenas, levantado para glorificar a deusa Atena, sucessivamente destruído e ocupado e reutilizado, como igreja cristã, mesquita otomana e até simples paiol. Se por um lado a sucessiva ocupação de um espaço sagrado, mesmo que por diferentes cultos ou religiões, numa espécie de antropofagia, vê reforçada pelo mais recente ocupante a sacralidade do lugar, também a sua utilização para outros fins poderá por em causa elementos fundadores da nossa cultura, assente no respeito pelo outro e pela diversidade dos seus costumes e crenças. Assim, a reconversão dos espaços anteriormente dedicados ao culto religioso, com sejam templos e igrejas, é um fenómeno que tem vindo a crescer nas últimas décadas na mesma proporção do declínio do número de fiéis. Entenda-se neste caso, os diferentes ramos do Cristianismo, nos países industrializados do Ocidente. Da Austrália aos Países Baixos, passando pelos Estados Unidos e Portugal, o fenómeno da reconversão dos edifícios a outros fins, é um fenómeno que veio para ficar. As motivações poderão ser várias, ainda que vejamos em primeiro lugar os interesses imobiliários, que aqui descobriram um filão a explorar. É aqui que reside o que poderemos classificar de “pragmatismo” ocidental, com as suas raízes no protestantismo do norte da Europa, que rapidamente desmonta os fundamentos de uma matriz cultural de séculos para, sem quaisquer preconceitos, a adaptar a um presente que se quer verdadeiramente do “seu tempo”. O facto de muitas igrejas terem sido abandonadas ao culto religioso e os seus recheios vendidos ou integrados em museus, levou a que se transformassem em enormes espaços vazios, muitos deles esquecidos pelas autoridades civis e religiosas, entregues por assim dizer à sua má sorte. Todos conseguimos apontar exemplos de igrejas e conventos que se tornaram verdadeiros armazéns, albergando animais, produtos diversos ao mesmo tempo que servem de abrigo a todo o tipo de actividades, sendo igualmente refúgio dos sem-abrigo. No momento em que a Igreja de S. Julião, em Lisboa, se prepara para mais uma intervenção, que irá transformá-la deste vez em museu do Banco de Portugal, importa apontar alguns dados da sua funesta história: a igreja primitiva datada do século XIII foi completamente destruída pelo Terramoto de 1755. A sua reconstrução, segundo risco pombalino, teve lugar entre 1802 e 1810. Viria a sofrer um incêndio em 1816, sendo de novo reconstruída entre 1814 e 1854. Em 1933 foi adquirida pelo Banco de Portugal, estando aberta ao culto até 1934. A igreja é hoje utilizada como garagem do Banco de Portugal. Este é um dos exemplos de edifícios religiosos cujas utilização sofreu e está em vias de sofrer alterações significativas à sua função primordial. Seguem-se imagens de outros edifícios religiosos reconvertidos, um pouco por todo o mundo, que são exemplos reveladores da irrelevância do chão sagrado e do pragmatismo contemporâneo:
Igreja de S. Julião, Lisboa
Igreja Sta Teresa, Boston (convertida em casa)
Igreja convertida em casa, NY
Igreja dominicana, Maastricht, arq. Merkx + Girod Prémio arquitectura de interiors 2007 Utreque
Utreque
Igreja de S. Bartolomeu, Chodovice, Boémia Oriental, arq. Maxim Velcovsky
Igreja de S. Bartolomeu, Chodovice, Boémia Oriental, arq. Maxim Velcovsky